Pollyana Félix

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Opinião

Fé ou funil? A perigosa conversão da fé em estratégia de vendas!

Jesus não é, e nunca foi, um funil de vendas. Mas o mercado descobriu que, se o "amém" vier antes da oferta, a conversão (de leads) tende a ser mais rápida e eficiente.

Empreendedorismo, espiritualidade e ética não precisam ser antagônicos. Mas há uma linha tênue e cada vez mais cruzada, entre professar um propósito e manipular emoções para alcançar metas de faturamento. A fé, usada com intenções escusas, vem se tornando o novo storytelling predileto de quem quer vender cursos, eventos, mentorias, "profetizando transformações".

E é disso que precisamos falar.

O palco virou púlpito, e ninguém avisou!

Tenho recebido no Instagram centenas de mensagens de pessoas que investiram tempo, dinheiro e expectativas em eventos que prometiam desenvolvimento pessoal, empresarial ou estratégico. Mas, ao chegar, se depararam com pastores no palco, orações coletivas e até apelos explícitos para "aceitar Jesus". Detalhe: nada disso estava descrito no cronograma do evento. Por que será?

Para muitos, isso gera frustração, constrangimento ou até revolta. Não por rejeitarem a espiritualidade, mas por se sentirem enganadas! Eu já me senti assim algumas vezes... Acompanhe a minha visão, o problema não está em alguém professar sua fé, mas em disfarçar proselitismo de proposta profissional.

Cadê a coerência, a ética e o respeito por quem crê de forma diferente ou não crê?

O que é espiritualidade? O que é religião?

Espiritualidade é expansão de consciência, conexão com algo maior, fortalecimento interno. Religião é a escolha de um caminho específico, com crenças e ritos próprios. Misturar as duas no discurso pode até ser legítimo, desde que haja clareza e antecipação.

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Mas o que temos visto é o contrário: eventos que se vendem como experiências de alta performance, mas que viram cultos "improvisados", com scripts emocionais milimetricamente calculados para fazer chorar — e depois vender.

Isso não é espiritualidade. Isso é estratégia. E das mais perigosas.

A fé virou produto, embora isso não seja exatamente novo! Alô, cartas de indulgências... O milagre virou recompensa. E o sagrado? Virou marketing.

Como empreendedora, sei que toda boa venda começa com conexão. Mas existe uma diferença brutal entre criar vínculo e sequestrar vulnerabilidades.

Muitos profissionais já entenderam que ativar a fé das pessoas gera identificação imediata, reduz resistência, aproxima e cria senso de comunidade.

Em um país onde 86,8% da população se declaram cristãos (64,6% católicos e 22,2% evangélicos, segundo o Censo Demográfico de 2010 do IBGE), basta evocar o nome de Jesus para ganhar destaque no mercado. Como bônus, essa simples referência confere automaticamente à pessoa a imagem de alguém "de valor". E, se algo não sair como o planejado, sempre é possível atribuir o insucesso à "obra de Deus".

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Repito, a mistura entre fé e negócio não é nova. Mas vem ganhando roupagens cada vez mais sofisticadas.

Basta olhar os grandes players do marketing digital e do coaching empresarial para enxergar a verdade: a Bíblia se tornou gatilho, o altar virou palco e "milagre" é o nome da oferta-relâmpago. E isso não é privilégio dos gigantes — venho acompanhando com mais atenção essa banalização da fé desde agosto de 2024.

O que antes era promessa de técnica hoje é revestido de misticismo. Fala-se de propósito, cura, renascimento. Mas, por trás, o que se busca é taxa de conversão.

E qual é o problema, afinal?

O problema é ético. É político. E é estrutural.

Porque, quando uma empresa ou uma figura influente usa a fé para manipular decisões, ela fere o princípio da autonomia. Quando um evento impõe um discurso religioso específico em um país laico e diverso, ele marginaliza e discrimina outras crenças. E quando um líder vende transformação espiritual enquanto entrega doutrinação camuflada, ele explora, e não lidera.

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Pior: esse tipo de prática afasta profissionais sérios, inibe talentos e descredibiliza o próprio ambiente de negócios.

Espiritualidade tem lugar no empreendedorismo?

Sim. Desde que não se torne uma ferramenta de captura. A espiritualidade pode — e deve — estar presente como valor interno, como força de alinhamento, como bússola ética. Mas jamais como mecanismo de persuasão camuflado.

É possível empreender com alma, com fé e com verdade. Mas isso exige coragem para ser claro. Exige postura para respeitar quem crê diferente. E exige sabedoria para não transformar Deus em slogan.

O que fazer então?

Empreendedora ou empreendedor que me lê: se você tem fé, que ela se revele nas suas ações, não no seu pitch.

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Se vai misturar religião com negócios, deixe isso explícito desde o início. Assim, vai quem se identifica. E quem não se sente confortável pode escolher outro caminho sem frustração, sem emboscada.

Não use o sagrado para "engajar". Não negocie o nome de Deus por um número de vendas. E lembre-se: o mercado muda, mas o caráter permanece.

Se recorrer à fé tornou-se a única maneira de validar seu produto, talvez seja hora de questionar a própria entrega.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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